sexta-feira, 11 de outubro de 2013

"Tenho pudor da loucura"

(Agradecimento discreto à Lygia Bonjunga Nunes)
 
A colcha de retalhos que compunha a sua vida já não era tão maleável quanto aquela que  integrava os seus versos...
Era difícil, pois, recompor novos desenhos, recombinar as cores, equilibrar os pesos dos mais diversos tipos de tecido, agora ajustados rigidamente no composto global que lhe cobria a vida.
Se por obra do tempo ou de sua resistência a mudanças, era impossível saber. Mas o fato é que fora vitimada por suas próprias convicções resolutas, a respeito de cada uma das circunstâncias inevitáveis da vida.
Que tivesse, então, escolhido como composição a objetividade fugaz das crônicas! Ou quem sabe a leveza irresistível da tão almejada poesia (mas nascera presa demais).
Tendo optado pela retórica verborrágica dos romances infindos, restara trancada nas próprias páginas por ela tecidas. Na fenda de suas conjecturas. Nas frestas de uma inconstância adiada.
A sua falta de consanguinidade com o mundo se refletia dia pós dia na ausência de funcionalidade para lidar com necessidades práticas. Viver em verso era, escancaradamente, muito mais uma patologia incurável que uma mera aspiração.
Mas se sua colcha de retalhos já estava tecida e envelhecia paulatinamente na gaveta empoeirada do tempo não lhe restava muita coisa para além da composição de sonhos. Porque desde sempre fora devota de objetivos tangíveis que programava, cumpria e concluía alcançáveis. Talvez fosse chegado o momento de começar a sonhar.
Perdida assim no devaneio onírico da pequena janela que repousa sobre o inacessível, alcançou a seguinte constatação: poderia descosturar, um a um, os retalhos da colcha para ressignificar, em seguida, aquela existência cansada.
Porém, não demoraria muito para que lhe viesse à mente o fantasma que atormentara seu amigo pintor ao tentar desfazer o irreversível nos bastidores do palco: não era costura, era tintura! E, na hipótese de não se poder separar os retalhos indesejados, tudo se convertia na mais profunda cor de saudade.
Ciente do avesso, rendeu-se ao frio que lhe fazia confortar-se à colcha de retalhos que assegurava, de uma maneira ou de outra, uma pequena sombra de sentido. Quem sabe assim dormisse e pudesse tangenciar por pequenas frações de segundo aquela quintessência tão desejada. O inapreensível era o arquétipo em que construía a sua fascinação pela arte e a sua preocupação excessiva (insuportável a si e aos outros) com propósitos humanitários e questões sociais. Sendo assim, não restavam mais dúvidas: era necessário dormir.
Afinal, se sonhos eram fruto de seu imaginário, não seria difícil atingir no plano de suas metáforas ridículas o colorido que pretendia lançar na maquete em preto e branco sobre a qual tinha edificado sua vida (de fato não era costura).
“Tenho pudor da loucura” - pensou. “Mas amanhã o relógio me despertará do hospício fundamental secreto e voltarei enfim à rotina daqueles que não se permitem sonhar mais”.

PS: Adendo acerca de três acepções pertinentes à metáfora concreta:
Onirismo (do grego “oneiros”, que significa sonho)
1. Refere-se a um estado mental que costuma ocorrer em síndromes confusionais e é constituído por um conjunto de alucinações visuais፣ interagindo entre si e com o "sonhador"፣ enquanto este está acordado;
2. Sintoma de transtornos psicóticos, manias, abuso de substâncias que tenham efeitos alucinógenos ou ao menos de prolongada privação de sono;
3. Experiência sobrenatural que pode ser punida ou estimulada socialmente de acordo com a cultura da região e as características peculiares de cada onirismo.

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