domingo, 10 de julho de 2011

A película de Magritte

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(Sonoplastia dos carros apressados na maior avenida da cidade...)
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ELA disse ao sujeito por detrás do balcão que lhe espreitava para além da fumaça do café: - Por certo há de haver uma lei na física - que eu, de formação bastante humana, não saberia dizer o nome - que estuda ou explica a razão pela qual emergem de dois referentes representados por dois corpos implicações complexas demais para serem passíveis de explicação por qualquer filosofia... sem referência alguma ao príncipe da Dinamarca, a não ser pelas ruínas. Você não acha?
ELE: É o que se dá, por exemplo, quando se percebe que à medida que nos aproximamos de um corpo (o outro, referente) maior ele fica?
ELA: Movimento inverso ocorre na instância metafísica, mas esta é uma deriva que não vem ao caso...
ELE: Por outro lado, há ainda a questão da gravidade... da atração entre os corpos e, finalmente,  na esfera dos destroços o ralo cósmico - se é que há a esta altura ainda alguma matéria.
ELA: É daí que decorre todo o problema... Ondas são energia.. e vibram.. e se propagam. Então, é como a frequência do rádio, sabe? Ondas que se encontram em sintonia vibram juntas!
ELE: Sim, é exatamente disso que falo! Corpos, simultaneidades, sintonia, atração, aumento ou redução de suas massas. O que você acha de tudo isso?
ELA: Acho que Barthes, se quiser, que explique. Ou Magritte.
(Ele acende um cigarro e lhe toma a palavra:)
ELE: Ela não sabe, mas hoje estamos distantes como nunca antes..
ELA: Ela não sabe?
ELE: Não, nunca se sabe! Os paleativos imediatos afastam a necessidade de "saber" e ofuscam os olhos.
ELA: Ela é o paleativo?
ELE: Todos somos! Mas o fato é que quanto mais nos aproximamos mais criamos a insondável distância, a cordilheira do hiato...
ELA: Quem, afinal, é você? 
ELE: Essa pergunta não viria ao caso, ante a evidência das semelhanças que nos aproximavam no marco inicial do cronômetro que agora não conseguimos parar mais. Mas, neste instante, eu poderia ser o garçon, por exemplo, pouco importa...
ELA: A fumaça do teu cigarro me deixa com falta de ar...
ELE: O mesmo me faz a fumaça do teu café.
ELA: Bem, como diria aquela velha canção, "Meu vício de amar você não é o mesmo que tomar café"...
ELE: Sabe, eu sempre preferi vinho.
ELA: Tinto?
ELE: Tinta.  Adoro tintura.
ELA: Mas a costura se desfaz de maneira mais rápida e sem deixar maiores sequelas...
ELE: Você é o buraco negro que me atrai e me deforma.
ELA: Somos o ralo cósmico um do outro - e é só o que há!
ELE: Você roubou a minha personalidade, de tanto te ser já não consigo ser o inverso.
ELA: Você roubou o meu rosto... olha para ele o tempo todo quando eu sequer me recordo dos meus traços.
ELE: Então, quem somos nós? Alteridade... o inferno de Sarte?
(ela olha o relógio e apaga o cigarro dele dentro da sua xícara de café:)
ELA: Bem, pouco importa. Dezessete e quinze, nossos filhos nos esperam no colégio. Depois falamos sobre isso...

sábado, 2 de julho de 2011

Memórias da tapeçaria...

(...)
"Há uma gota de sangue em cada poema" - o título encerra o poema, Mário! Não era preciso dizer mais nada. Vou então fumar este último cigarro e abraçar a realidade prática do meu dia... como se ela fosse uma verdade tão absurda por fora quanto me é por dentro. Bem como Ângela, sou melhor tapeceira do que cronista.  A ficção é uma aspiração intangível à qual eu me agarraria com tranquilidade se soubesse os limites a partir dos quais ela encerra a realidade. Há aqui já passados cinco anos e talvez ante o meu fim evidente eu consiguisse atar as duas pontas da vida e restaurar na... (...) bem, ainda não sou velha e tampouco carrego um ser meditativo e comatoso de lucidez mais profunda. Ainda tenho as crises de "mulherice" de Ângela, inclusive. E continuo profundamente grata à língua presa que me traz as melhores definições. Há cinco anos eramos mais próximas e eu achava que gostava de Nietzsche. Este pode ser, talvez, o primeiro sintoma da minha protovelhice. Sofrer de amor feliz é contraditório em sua insegura espera pressionada - Lasciate ogni speranza vuoi chi entrate! - Não, Beatriz não desceu até o inferno.