segunda-feira, 30 de abril de 2012

A terceira pessoa

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(Ela atentou)
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Tamanha me pareceu a afronta daquele encontro casual, de dois ou três dias atrás. Era manhã ou noite e algo me sugere a Paulista, após duas ou três horas de inebriado confronto mental.
Ele trazia consigo um ar nipoparaguaio e confundia o meu preconceito com aquele aspecto inequívoco de jornalista - porque sempre me incomoda gostar de ler as pessoas que eu detesto ler, mesmo sem nunca ter lido.
Assim me disse: "Amar hemburrece. Não amar, também".
É evidente que já de início autosugeri uma implicância infundada, além das minhas conclusões previsíveis sobre os dominadores do verbo e suas falas óbvias. Porém, decidi ir adiante: vai que... 
Não satisfeito com a complacência do meu mergulho, ele soltou então o seu tiro cirúrgico: "Não confio em quem usa terceira pessoa". - Vá lá... agora só poderia ser comigo! Era pessoal, óbvio que era! Ao menos era nisso que eu acreditaria, mesmo se não fosse.
Decidi responder, porém hesitei em questionar sobre religiões e crenças, discorrer sobre o ateísmo cardiovascular e as minhas eticéteras. Preferi encerrar o diálogo ainda não começado profanando os coloridos juvenis com o meu preto e branco. E segui:
"Em verdade, Ela disse: A certa altura da vida percebi que estava escorrendo pela fenda do vale difícil que demorara anos para escalar. Descer assim lentamente me trazia um incômodo enorme justamente por não estar sentindo os solavancos daquela superfície acidentada. Quando chegasse à base, se é que algum dia chegaria, sabia que sentiria ardendo os arranhões cultivados na retrotrajetória. Ao mesmo tempo, me tomaria a certeza de ter deixado resíduos pelo caminho trilhado - e é aí que nasce a moral de toda estória. De qualquer forma, a ideia mais assustadora nascia da possibilidade de nunca mais parar de descer. Eu sabia que poderia dar cabo à angústia me soltando da corda que me prendia à segurança creditada, mas temia que o chão estivesse tão próximo. E foi aí que me ocorreu o consolo de que alcançar o ápice já havia concretizado qualquer objetivo, ainda que desprovido de propósito. Sendo assim, não havia mal algum em retornar ao início sem maior necessidade de refazer o percurso. Mas e se eu não quisesse? E se eu sentisse que não queria mais por não querer do que por vontade? Seria puro egoísmo... comigo, com o trajeto, com o abismo sequer sabido que por baixo me espreitava e sobre tudo com a resistência pretensamente inerte da pedra. E foi justamente desta última que eu extraí a solução única para a minha condição... Se eu abraçasse a pedra e me tornasse parte dela adquiriria a tão sonhada coadjuvância e passaria os dias a discorrer sobre as coisas observáveis. Nem coautora e nem partícipe de menor (ou maior) importância, mas tão somente testemunha sinestésica de movimentos inebriados com um final deveras previsível. Agir assim significaria fadar-me a uma existência irônica, contudo já me tomavam sérias dúvidas se desde o início assim não havia sido. Aceitei o acordo tácito, me agarrei àquela estabilidade e decidi dela não mais me soltar".
_ É só isso? - questionou.
_ É sim! De qualquer forma, toda boa estória termina com um "Eu bem que tentei..."!   
_ É uma parábola? Se for alegoria bíblica, queria deixar bastante claro que não acredito em livros sagrados e que além de tudo sou ateu.
Respondi com um sorriso terminativo e acenei ao garçom para pedir o cardápio. Falavamos ambos sobre descrença e achei que seria contraditório prorrogar o assunto.