quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Toda Estupidez Será Castigada

(Ou crônicas à volúpia da gema)

...porque adoramos pisar em ovos.
Sim, veramente. E isto é fato inconteste, apesar de inconcebível. Digo-o, de fato, porque adoramos pisar em ovos; e quando, por fortuna do acaso, vez ou outra conseguimos pisar em terras firmes, nos sentimos mal e debilitados (um truque torpe de nós contra nós mesmos, mas tudo bem); ato contínuo, abrimos mão daquele piso demasiadamente brando: Porque adoramos pisar em ovos.
Talvez seja pela casca, tão frágil e incerta. Ou quem sabe pela gema, que explode lentamente apregoando-se em nossas pernas e causando mal cheiro, de maneira grudenta e de deveras difícil reparação (é necessário lavar bastante). Numa terceira hipótese, ousaria arriscar que talvez seja porque quando nossas pernas (bem como o restante do corpo) acabam marcadas quase definitivamente pela massa viscosa formada pela casca frágil, pela gema fértil e por eventuais pedaços de carne provenientes de nosso corpo dilacerado no decorrer do percurso (o que se aplica mais especificamente àqueles que permanecer no trajeto dos ovos por um longo tempo) sentimos uma sensação dolorosa de vida, não sei.
Eu sei: é que adoramos pisar em ovos! E no final das contas, a terceira hipótese, a mais triunfal e cênica de todas, nos possibilita a chance e arrancar à unha toda aquela massa amorficamente enraizada e preparar uma espécie de omelete vital que às vezes digerimos à contragosto, às vezes não.
Bem como as nossas, os ovos são meras aspirações de alguma vida, que sempre acaba pisoteada, porque adoramos pisar em ovos. E então aqui as coisas se juntam e conseguimos chegar a um ponto de convergência. Meu peito agora solta um aperto; e isso é fato. Como também é fato que não sei dizer se ele é consequencia do almoço que não fiz no dia de hoje e do cigarro artesanal que me incitou diversas tosses no primeiro trago, ou se são apenas os primeiros vestígios dos outrora ovos, que agora perdi de vista, talvez por estarem bem abaixo dos meus pés, ou bem acima do meu peito.
Ressalto que isto não é uma metáfora. Ou é. No mais, pode ser tanto uma coisa quanto outra. Como bem pode ser nenhuma delas. Poderia, por exemplo, ser uma metáfora à ditadura que nunca vivi. Mas não é. Como bem poderia ser uma paródia à crise do prédio de piso azul no centro da esplanada distrital. Mas não é. No final das contas tratar-se-ia apenas de um breve relato sobre o incomensurável prazer humano de pisar em ovos. Com a ressalva de que o pronome não determina nada, mas o “ia” diz muita coisa. Diz inclusive que ia, agora não vai mais.
Talvez trate-se apenas de lançar palavras soltas sobre o que não conhecemos (nosso “verborragismo” atávico). Ou, de lançar palavras certas sobre o que conhecemos mas não deliberamos (culpa da nossa (in)competência emocional). Mas eu havia feito menção ao “ia” (da mesóclise) e por conta dele me sinto na obrigação de encerrar este discurso. Por detrás dele há uma série de discursos sustentados sobre uma absoluta instabilidade. Nada ainda é certo e só o que eu sei até então é o evidente: que nós adoramos pisar em ovos. O tremendo mal cheiro que causam me traz enjoo, mas ainda não sou um Grande Ser Tão capaz de me safar imune. O antídoto que me resta é me vestir com as alpargatas do verbo para tentar sair um pouco ilesa (os cortes estabelecidos pela casca doem como nunca e já me renderam uma cicatriz numa das pernas).
A volúpia da gema me causa espanto e loucura, mas é a casca aparentemente frágil e incerta que acaba por me causar as piores cicatrizes, por dentro.