terça-feira, 27 de março de 2012

NOTA SOBRE OS PRONOMES

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(Notas sob o pronome)
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A ausência do ser-com e a plenitude do ser-em-si: uma incrível sensação de pertencimento! 
Que eu adoraria chamar de escatológica, não fosse pela certeza da inexorável reticência. 
Perto demais há sempre algo que se perde ou distancia. 
O cinza e seu outono trazem saudade da antiga sensibilidade havida e sempre sempre envergonhada.
_Ela.
Tenho me inclinado cada vez mais à terceira pessoa...
Talvez a primeira pessoa não exista mais.  

sábado, 3 de março de 2012

Crônicas à Luísa

(Talvez ela possuísse outro nome)
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E então ela decidiu que contar migalhas de pão sobre a mesa seria o seu mais novo esporte. Lembrara-se dos anos passados em que pisoteava espalhadas pelo chão as folhas secas. O amarelo e seu outono deixavam-lhe encantada como nada. Por outro lado, fingir crer na existência daquele sentimento burguês que especialmente no século vinte acometera o imaginário humano lhe faria mais meiga, mas não menos hipócrita. 
Não lhe eram apenas obrigatórios os sonhos, mas também os risos, os votos, as penitências e os pedidos para o dia seguinte. A descrença era assim uma blasfêmia sob os seus cachos negros distribuídos no colo branco. Refém social de si mesma, ela era uma Monalisa presa em seu enigma tanto quanto o era Capitu contida em seus olhos de ressaca. 
Cogitara certa vez que a loucura poderia lhe ser conveniente diante da vontade de expandir-se propagando em voz gritada a sua repulsa à marcha nupcial, às propagandas otimistas e aos programas especiais de fim de ano. Mas acordara-se que inadivertidamente rendera-se também muito cedo à voz comedida e meiga, aos modos delicados e aos sorrisos gentis que lhe dispensavam de agir como quem de fato se importa. 
No fundo, ela sabia e aprendia a cada dia entre suas migalhas que a sociedade, os costumes e toda e qualquer atividade grupal humana prestava-se desde os primórdios a fabricar suicídios de ego, fanatismos religiosos e transtornos psiquiátricos de qualquer tipo. Típicos exemplos de esquizofrenia coletiva consuetudinária. Sendo assim, contar migalhas de pão sobre a mesa, embora não lhe rendesse medalhas olímpicas, seria uma ótima forma de preservar seus sentidos e de possuir a si mesma.     

Desfuncionalidades à Rua Montmartre

"Em volta dele as coisas tinham-se agrupado, esperavam sem um sinal, sem a menor sugestão. Estava só no meio de um silêncio monstruoso, só e livre, sem auxílio nem desculpa, condenado a decidir-se sem apelo possível, condenado à liberdade para sempre"


Ler "Ser e Tempo" aos vinte e cinco anos de idade pode ser esclarecedor - Eu disse "pode"! Porque os trinta anos passados fazem uma mulher balzacquena, mas não necessariamente interessante. Talvez a pseudoverdade (paseudo como o são todas as outras) esteja na aceitação de que o tempo cronológico pouco entende e nada delibera sobre a fixação de parâmetros que se encerram na esfera existencial... de individualidades nem tão homogêneas assim. 
Passo a me explicar:
Paris boêmia, 1930. O exercício da liberdade de Mathieu mostra o quanto é vulnerável a racionalidade humana quando debruçada sobre o exercício da escolha: cruel atividade que sempre conduz ao erro inevitável, situado entre o que foi concretizado e o que jamais se fará sabido.  
Por outro lado, a inércia na tomada da decisão implica a imposição de opções que, justamente por serem involuntárias, parecem indesejadas. Nasce daí a angústia que faz do "estar livre" um pesar decorrente do fato de se possuir liberdade na escolha mas não para a escolha. O livro arbítrio obriga, ao passo que também liberta. 
Mas surge entre os fios de cabelo branco dessa discussão agostiniana um questionamento sob a fenda da fechadura à porta: estar preso em um quarto ignorando tal condição e não desejando sair é estar livre? 
Não escolher é procrastinar mas é sobretudo ser escolhido. Tal qual o foram Mathieu, Marcelle e Ivich no que se concluiu como um aborto triplamente qualificado em desníveis etários sem qualquer razão. E é por isso que tais parâmetros existenciais acabam por demonstrar que tanto literalmente quanto literariamente a idade da razão nada mais é do que idade alguma.     
Isto nadificadamente posto, em vinte e cinco anos ainda não balzacqueanos mas deveras desarrazoados, elevo ao grau de máxima a seguinte conclusão: se à fala pertence aquilo sobre o que se fala, a minha liberdade pertence à minha retórica, mas não a mim.