segunda-feira, 15 de junho de 2009

Das autópsias...

(onde o radical auto - anote-se - possui tamanha e notável importância)

“É como se diz nas autópsias: o interno não aguenta tinta” - mal engolira a seco o café amargo de meu mais um dia desses e já recordava a prosa machadiana. Não, nada disso. Não quero parecer magister em interpretações equivocadas, todavia, caríssimos, de antemão e prontamente esclareço que não se trata de nenhuma retórica bem elaborada de algum Dr. OAB 0000-0, enfim. Trata-se, antes, de prova fática e talvez iletrada, quiçá realmente doutora – não se sabe! - já que se trata de carne fria, congelada a sabe-se lá quantos graus centígrados num freezer nada aconchegante. Que me desculpem aqueles a quem eu causei decepção ao dizer que não trato – e relato – aqui o estado estático do presunto que recheou meu pão francês no café da manhã deste dia (até porque reneguei aos hábitos carnivoros há um tempo – e por um tempo – e também não costumo acordar a tempo de dirigir-me à padaria para esse tipo de deleite matinal – sim, o tempo também está em toda parte). Trata-se, presados, de carne humana: esta, essa e aquela que em alguns lugares do mundo, inclusive n'alguns da terra brasilis, serve de comida aos abutres e que mostrou-se à minha frente nesta manhã de segunda numa visita ao Instituto Geral de Perícias. Ora, ossos (e, aqui, para todas as acepções) do ofício! - vulgo, aula de Medicina Legal. O universo parecia mais suave no Mundo das Letras, digo, o do meu tempo de antiga graduação. Ou não! - penso. Tudo o que é ato humano sangra, de alguma forma. O salto se deu apenas para uma esfera mais concreta. E assim parti eu em minha sina, ora vá-sina, acadêmica - desde as salas de análises de identificação mais simples até o cheiro de formol. Lá o “arquivo morto” não encontraria nome mais cabível. Tudo cheira a gelo e frieza e não se vê muitas manifestações do que se conhece por vida. O que separa o ser humano de uma máquina é, hoje em dia, quase nada (exemplifique-se com as bonecas de criança com semelhança semi-viva ou com os bonecos de dublagem ou de simulação). Ressalto aqui que ainda não entrei no mérito do aspecto cognitivo (ou interior), até porque, retomando Machado, o interno realmente não aguenta tinta. O corpo, contudo, mostrava-se ali, duro, mas com cor, brilho opaco e com muito mais massa corporal que muitas das crianças que me apareceram ontem num documentário sobre o Zaire, vá lá! E assim, retomo, a única diferença entre aquele, no freezer, e os outros, o médico legista e os os companheiros de sala, era, sem dúvida, a existência/inexistência de movimentos e funções vitais. Talvez, numa parte mais..., digamos bem simplóriamente, “profunda”, o cara do freezer estivesse muito mais vivo que tantas outras pessoas aqui de fora (não quero falar sobre o “aqui de dentro”). Sendo assim, e por fim, a ausência de vida se dava, na sala, pela falta de cor, de calor, de céu ou sol, quem sabe de uma vegetação colorida que não demonstrasse cores tão opacas quanto as de uma natureza morta (essa já várias vezes pintada e certamente pendurada em diversas paredes desse mundo).
Não sei se quero escrever sobre isso! É enfadonho e cheira à morte e eu não pretendo lançar mão do tinteiro e encenar um Brás Cubas do terceiro milênio. A morte se dá de várias formas. Morre-se todos os dias, de uma maneira ou de outra. E eu, que contrariando Aristóteles não sei se pretendo ser imortal tanto quanto me for possível, preocupo-me antes com o desejo que às vezes me bate de fugir do (com) gelo interno, seja com um copo de wisky, com um trago de Rosa ou postanto este relato funesto aqui. Por fim, deixo claro que também não pretendo cheirar a Bukowski. E, não final das contas, espero também não ter conduzido ao (com) gelo nenhuma alma encalorada que teve má fortuna de se aventurar nesta narrativa – tão fria e áspera quanto o indigente desprovido de vida que conheci nesta manhã, de segunda. As finalizações reiteradas são propositais, já que o texto trata de finitude e angústia (que venha Kieekegaard!). Se bem que não sei ao certo se existe metalinguagem para a morte. Assim, sem mais (linguagem ou meta), eis o fim!

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